Resposta à Consulta Nº 21615 DE 07/07/2020


 


ICMS – Locação de bens móveis (veículos automotores sem condutor) seguida da comercialização para os locatários – Incidência do ICMS. I. A saída de bens em virtude de contrato de locação está fora do campo de incidência do ICMS (artigo 7º, inciso IX, do RICMS/2000), desde que tal contrato não seja desvirtuado para encobrir negócios jurídicos de outra natureza.


Monitor de Publicações

ICMS – Locação de bens móveis (veículos automotores sem condutor) seguida da comercialização para os locatários – Incidência do ICMS.

I. A saída de bens em virtude de contrato de locação está fora do campo de incidência do ICMS (artigo 7º, inciso IX, do RICMS/2000), desde que tal contrato não seja desvirtuado para encobrir negócios jurídicos de outra natureza.

Relato

1. A Consulente, que declara no Cadastro de Contribuintes do ICMS – CADESP, exercer, como atividade principal, a fabricação de automóveis, camionetas e utilitários (Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE 29.10-7/01), ingressa com consulta em nome de sua filial recém constituída, localizada no Estado de Goiás, não inscrita no cadastro de contribuintes do Estado de São Paulo, que exerce atividade de locação de automóveis sem condutor (CNAE 77.11-0/00) e que pretende efetuar a venda do bem locado após o término do contrato de locação.

2. Informa que essa filial goiana pretende realizar “locação” de veículos automotores sem condutor para terceiros locatários (pessoa física ou jurídica) localizados no Estado de São Paulo. Entende que, em decorrência da atividade de locação de bens móveis, não deve se inscrever no cadastro de contribuintes do ICMS deste Estado por não se revestir da condição de contribuinte estando desobrigada, por conseguinte, ao cumprimento de qualquer obrigação acessória, considerando que tal atividade não está abrangida pela incidência do imposto estadual.

3. Anexa o contrato elaborado para a operação pretendida e acrescenta que os veículos a serem disponibilizados para “locação” serão contabilizados em seu ativo imobilizado. Cita que esses bens sairão do estabelecimento goiano da Consulente com destino a uma filial (concessionária revendedora) situada em território paulista previamente escolhida pelo locatário, onde será feita a retirada do veículo.

4. O transporte dos veículos com destino à filial (concessionária revendedora) será feito por caminhão de carga específico para este fim (“caminhão-cegonha”) acobertado apenas por uma declaração simplificada denominada “autorização para transporte de veículo”, que especifica os bens transportados, seu destinatário e o local de entrega em território paulista.

5. Informa que o período de “locação” é pré-determinado em contrato, sempre superior a 12 meses, e, findo esse prazo, o locatário terá a opção de exercer o direito de preferência na aquisição do veículo automotor objeto da “locação”. Nessa hipótese, caso o locatário manifeste interesse em adquirir definitivamente a propriedade do automóvel que está em sua posse, a locadora-vendedora (Consulente) consentirá com a venda desse bem que está classificado em seu ativo imobilizado, que se dará mediante preço previamente determinado no contrato.

6. Entende que, pela referida alienação do veículo ao locatário, não está obrigada a se inscrever no cadastro de contribuintes do ICMS, cabendo a aplicação análoga da disciplina prevista na Decisão Normativa CAT 02/2006, no Convênio ICMS-64/2006 e na Resposta à Consulta nº 20796/2019 dada por este órgão consultivo.

7. Sendo assim, interpreta que tal hipótese de venda pode ser enquadrada no artigo 125 do RICMS/2000, que admite a ulterior transmissão de propriedade pela tradição simbólica da mercadoria que tenha saído anteriormente do estabelecimento transmitente em decorrência de locação, não havendo necessidade, a seu ver, do retorno físico do bem à sua filial goiana (locadora) antes da sua entrega definitiva ao novo proprietário, locatário adquirente paulista, que já se encontra na posse do bem. Nesse sentido, aponta ter identificado cenários semelhantes nas Respostas às Consultas nºs 10463/2016, 15637/2017, 16733/2017 e 16664/2017, publicadas por esta Consultoria Tributária.

8. Diante do exposto, apresenta as seguintes indagações:

8.1. Se na hipótese em que o bem locado, classificado em seu ativo imobilizado, seja vendido ao locatário após o término do período previsto no contrato de locação e, considerando que o adquirente já se encontra na posse do veículo, a transmissão da propriedade do bem que sairá do patrimônio da Consulente para ingressar no patrimônio do locatário-adquirente pode ser realizada por meio da tradição simbólica com transmissão de propriedade, por intermédio unicamente do Certificado de Registro do Veículo – CRV;

8.2. Entendendo que se trata de uma operação sem incidência do ICMS e pelo fato de o estabelecimento transmitente não ser contribuinte do ICMS, a Consulente não está obrigada a se inscrever no cadastro de contribuintes do ICMS deste Estado, e nem a emitir documentos fiscais em razão das operações relatadas.

Interpretação

9. Preliminarmente, esclareça-se que as disposições previstas no Convênio ICMS-64/2006 não são aplicáveis ao Estado de São Paulo, conforme prevê o artigo 3º do Decreto nº 50.977, de 20-06-2006 e a Resposta à Consulta nº 20796/2019 refere-se a assunto totalmente distinto ao apresentado pela Consulente. Dessa feita, esses dois atos normativos não serão considerados na análise do caso concreto da Consulente e, consequentemente, na elaboração da presente resposta.

10. Feitas as observações iniciais, depreende-se do relato que a Consulente, fabricante de veículos automotores, pretende ingressar em um novo modelo de negócio, qual seja, a revenda de veículo de fabricação própria que foi disponibilizado anteriormente para “locação” a terceiros, sendo essa venda realizada precipuamente ao próprio locatário.

11. Na análise das informações declaradas pela Consulente tanto no Cadastro de Contribuintes do ICMS do Estado de São Paulo (CADESP), como no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), nota-se que a atividade econômica principal exercida pela matriz e por diversas filiais abertas até 15/03/2020 é a fabricação de automóveis, camionetas e utilitários (CNAE 29.10-7/01), com destaque para sua principal planta industrial localizada no município goiano, aberta no ano de 2007, de acordo com o registro constante no CNPJ.

12. Não obstante a principal atividade econômica da sociedade empresarial na qual a Consulente é integrante ser a fabricação e comercialização de veículos, verifica-se que quase a totalidade dos seus estabelecimentos, entre eles a filial industrial goiana supracitada, declara o exercício da atividade de locação de automóveis sem condutor (CNAE 77.11-0/00) entre suas diversas atividades secundárias.

13. Isso posto, cabe, então, analisar a atividade de locação de bens móveis, atividade essa fora do campo de incidência do ICMS, nos moldes do inciso IX do artigo 7º do RICMS/2000, mas desde que não utilizada para encobrir negócios de natureza diversa (a exemplo da compra e venda).

14. Com efeito, a locação de bens está civilmente disciplinada nos artigos 565 e seguintes da Lei 10.406, de 10/01/2002 (Código Civil). Desses artigos decorre que a locação é contrato “pelo qual uma das partes se obriga, mediante contraprestação em dinheiro, conceder à outra, temporariamente, o uso e gozo de coisa não fungível” (Orlando Gomes in “Contratos”, Ed. Forense, 18ª ed., pág. 274).

15. De acordo com o inciso IV do artigo 569 do mesmo Código, está entre as obrigações do locatário “restituir a coisa finda a locação, no estado em que a recebeu, salvas as deteriorações naturais”. Assim, a princípio, salvo situações excepcionais, a restituição do bem ao final do contrato é um dos requisitos essenciais para a configuração da locação. Desse modo, a opção contratual de posterior compra do bem “locado” pelo próprio “locatário” pode descaracterizar a locação, já que, a depender da situação in concreto, pode demonstrar falta de interesse do “locatário” na devolução de tal bem, cujo intuito seria de antemão permanecer com o bem como se próprio fosse.

16. Assim, na hipótese de uma empresa se utilizar indevidamente da denominação de “locação” para operações que seriam na verdade compra e venda (venda a prazo, ou a contento, ou com outra cláusula especial), essa operação estará sujeita à incidência do ICMS.

16.1. Salienta-se que esse assunto de locação com intenção de transferência definitiva já foi, inclusive, objeto da Decisão Normativa CAT 03/2000 (“cessão de bens para consumo com a intenção de ser definitiva – Descaracterização do Contrato de Locação”), que de modo algum contradiz a Decisão Normativa CAT 02/2006, mencionada pela Consulente; do oposto, complementam-se.

17. Feitas essas considerações gerais, analisando o caso específico da Consulente, embora alguns elementos de seu modelo contratual nos causem estranheza, não se pode, de plano, afirmar apriorística e categoricamente que não há locação por haver a venda posterior do bem locado. No entanto, essa situação, a princípio, deve ser residual, atípica, e não constituir o modelo negocial para amparar suas vendas, sob pena de se desvirtuar o contrato de “locação” (o que parece ocorrer no caso, todavia).

18. Nesse ponto, acrescenta-se que a existência de determinadas cláusulas no modelo de contrato de locação apresentado, não comumente presentes no instrumento que ampara esse tipo de negócio, parece denotar o real intuito de transferência definitiva da propriedade do veículo ao próprio “locatário”, a mencionar, alguns exemplos: (i) a possibilidade de o locatário poder instalar acessórios e equipamentos veiculares (insulfilm, bancos de couro, kit multimídia, sensor de ré); (ii) a manutenção corretiva decorrente de desgaste natural (alinhamento, balanceamento, pastilhas e discos de freios, pneus) ser de responsabilidade do locatário; (iii) a possibilidade de o locatário escolher o final da placa do veículo, em seu emplacamento originário; (iv) a possibilidade de o locatário ceder o direito à opção de compra do veículo a usuário exclusivamente por ele indicado; e (v) o preço de compra já ser definido no mesmo contrato.

19. Nesse contexto, recorda-se que, em que pese a autonomia da vontade e a livre iniciativa, cabe aos particulares, no exercício regular de suas atividades, zelar pela lisura das práticas negociais, sob a observância da boa fé e da função social do contrato. Assim, não podem os contribuintes se valer da utilização formal de negócios jurídicos estruturados apenas no intuito de se ocultarem do dever fundamental de pagar tributos.

20. É nesse sentido que, de acordo com o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, a autoridade fiscal tem competência para desconsiderar os atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.

21. Sob essa ótica, recorda-se que os tributos não incidem sobre as disposições contratuais em si, tal como acordado pelas partes, mas sim sobre o fato econômico subjacente. Sendo os contratos meras qualificações jurídicas do fato dadas pelas partes, essa qualificação pode se mostrar precária em relação a terceiros, especialmente em relação ao Fisco, sobretudo quando o fato econômico subjacente não corresponder à qualificação contratual dada pelas partes. Assim, ao procedimento fiscalizatório, cabe a persecução da verdade material subjacente às disposições privadas, isto é, cabe ao Fisco a persecução dos fatos jurídicos que efetivamente tenham ocorrido in concreto. E, em decorrência disso, o referido parágrafo único do artigo 116 permite a desconsideração dos atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.

22. Ou seja, não pode haver, por mera convenção entre as partes, a subversão de negócio jurídico diverso para classificá-lo como de locação. Assim, se chamada à fiscalização e a autoridade administrativa verificar, em seu juízo de convicção, elementos que denotem a utilização do contrato para encobrir negócios de outra natureza, caberá o lançamento do imposto de acordo com a natureza do negócio efetivamente ocorrido.

23. Feitas essas considerações acerca do contrato de locação e tendo em vista que a Consulente postula a aplicação por analogia da Decisão Normativa CAT 02/2006 às suas operações (locação de veículos com posterior alienação ao locatário), imprescindível tecer alguns comentários relativamente à interpretação apresentada pela Consulente. Veja-se.

24. A Decisão Normativa CAT 02/2006, conforme entendimento exarado por esta Consultoria Tributária, foi editada com base na atividade econômica de locação de veículos (sem motorista) exercida por empresa que tem por objeto exclusivo essa atividade, ou seja, por sociedades cuja atividade-fim seja exclusivamente locação de veículos, sem condutor, a terceiros (portanto, não contribuintes do imposto e não inscritas, o que não é o caso da Consulente, diga-se – vide item 11 da presente resposta).

25. Prosseguindo, para o exercício de sua atividade-fim, as empresas locadoras de veículos necessitam adquirir veículos automotores. Sem a aquisição dos veículos não há como exercer a atividade empresarial em análise. Portanto, esses veículos classificam-se como bens que integrarão seu ativo imobilizado, que passam a integrar o conjunto de bens necessários à consecução da atividade propósito de sua existência, sendo que a empresa locadora encontra-se no ponto final da cadeia de circulação da mercadoria “veículo”.

26. Situação diversa ocorre com a Consulente, cuja atividade-fim é a fabricação e venda de veículos automotores. Ainda que tenha sido aberta uma filial registrada junto aos órgãos públicos exclusivamente como locadora de veículos (sem condutor), no intuito de se assemelhar à atividade exercida pelas locadoras de veículos, o propósito negocial da sociedade empresarial à qual pertence a Consulente e a principal fonte para alcançar sua finalidade existencial continua sendo a comercialização de veículos automotores.

27. Tanto é que a filial da Consulente, inserida na mesma sociedade empresarial cujo propósito é a fabricação de veículos, não precisará adquirir os veículos que serão utilizados na atividade de locação, ou seja, a montagem de todo aparato necessário para o exercício da atividade de locação de veículos será feita, teoricamente, sem um desembolso financeiro na proporção e no modo como ocorre com as empresas que atuam exclusivamente como locadoras de veículos.

28. Sendo assim, com relação aos veículos fabricados pela Consulente e disponibilizados para o exercício da atividade de locação de veículos, há de se questionar sua classificação no ativo imobilizado, podendo ser contabilizados ou no ativo circulante ou no ativo realizável a longo prazo, dependendo do prazo esperado de realização, conforme preceitua o subitem 9.1 da Decisão Normativa CAT 02/2006.

29. Adicionalmente, esclareça-se que, para contabilizar o bem no ativo imobilizado nos termos da mesma Decisão Normativa, a empresa locadora de veículos deve atender aos requisitos previstos no subitem 9.2. transcritos a seguir.

“(...)

i) não for destinado à realização, ou seja, não for destinado "à transformação direta em meios de pagamento";

ii) seja utilizado "na consecução das atividades-fins" da empresa;

iii) seja, como regra, efetivamente utilizado nas atividades fins da empresa por prazo superior a 12 meses;

iv) "haja a expectativa de auferir benefícios econômicos em decorrência de sua utilização".

(...)”

30. Entretanto, tais requisitos parecem não ser aplicáveis ao caso da Consulente, pelos motivos apresentados a seguir:

30.1. Quanto ao subitem “i”, a princípio, na atividade negocial realizada pela Consulente há uma nítida pretensão de transformação do veículo como meio de pagamento, destinando-o claramente à realização, visto que o próprio contrato indica qual será seu preço de aquisição após o relativamente curto período de 12 meses, considerando a natureza de bem durável dos veículos automotores;

30.2. Referente aos subitens “ii” e “iii”, conforme anteriormente exposto, a atividade-fim da sociedade empresária não é a locação de veículos, mas sim a fabricação e comercialização dos mesmos, ao contrário do que ocorre com as empresas de locação de veículos propriamente ditas. Para a Consulente, a locação de veículos demonstra ser mera atividade secundária dentre tantas outras declaradas.

30.3. Mas, aqui, um esclarecimento faz-se necessário. O mero fato de determinada sociedade exercer a atividade de locação de forma secundária não é suficiente para descaracterizar esse modelo negocial. É perfeitamente possível, em tese, que um fabricante e comerciante de determinada mercadoria também realize a locação destas para terceiros. O que não se admite, contudo, é que, em razão de particularidades do modelo negocial adotado, essa “locação” seja utilizada com o fim de ocultar uma real operação de venda da mercadoria;

30.4. Pelos termos do contrato anexado na consulta, depreende-se que o principal benefício econômico obtido com o veículo não decorre do seu emprego na atividade de “locação”, mas sim da sua revenda ao término dos 12 meses. Nesse contexto, somente seria aceitável compreender a locação como a principal fonte de benefício financeiro com o veículo caso o valor obtido pela Consulente durante os primeiros 12 meses (remunerado por meio do contrato de locação, sob condições compatíveis com as de mercado) fosse superior àquele obtido pela venda ao término desse período. Todavia, não é razoável supor que o valor pago por 12 meses de locação seja superior ao de venda de um veículo com esse mesmo tempo de uso.

31. Por todo o exposto, diferentemente do que entende a Consulente, não cabe a aplicação da disciplina prevista na Decisão Normativa CAT 02/2006 na operação pretendida, dado que se tratam de situações distintas. No entendimento do fisco paulista, à luz das informações fornecidas na consulta (que tornam a situação em análise diversa daquelas enfrentadas nos precedentes mencionados pela Consulente) e da legislação vigente do ICMS, a situação fática em tela representa uma verdadeira operação de venda de mercadoria (inclusive com participação direta de concessionária revendedora paulista - vide item 3 do relato), sujeita à tributação do imposto estadual nos termos do Convênio ICMS-51/2000, que estabelece a disciplina relacionada às operações com veículos automotores novos efetuadas por meio de faturamento direto para o consumidor. Portanto, caberá ao estabelecimento remetente, contribuinte do ICMS, o cumprimento de todas as obrigações tributárias (principal e acessórias) nos termos do referido convênio.

32. Por fim, registra-se que esta é a posição adotada pelo Estado de São Paulo. Considerando, no caso em questão, que a saída do veículo ocorre de estabelecimento localizado no Estado de Goiás, recomenda-se consulta ao fisco goiano para confirmar o entendimento daquele Estado.

33. Com esses esclarecimentos, consideram-se respondidos os questionamentos da Consulente.

A Resposta à Consulta Tributária aproveita ao consulente nos termos da legislação vigente. Deve-se atentar para eventuais alterações da legislação tributária.