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Planejamento tributário


14 mar 2011 - IR / Contribuições

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Em matéria de Direito Tributário, conceitos subjetivos são perigosos, porque dificultam a interpretação e, consequentemente, a fiscalização das leis. A análise é da advogada tributarista Mary Elbe Queiroz, sócia do escritório Queiroz Advogados Associados, que em fevereiro embarcou para Portugal para iniciar seu pós-doutorado em planejamento fiscal. A matéria objeto de seu estudo é controversa. Segundo ela, a Receita Federal tem desconsiderado operações e negócios lícitos, que buscam a redução de custos, por meio de “subjetividades” e “achismos”.

Desde a inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional, por meio da Lei Complementar 104/2001, o tema planejamento tributário gera polêmica. O dispositivo permite que o Fisco exija o pagamento de impostos mesmo nos casos em que ele foi evitado licitamente pelo planejamento tributário, pela chamada elisão fiscal. Porém, não há consenso sobre termos como “dissimulação” e “abuso de fórmula”, critérios que, segundo a lei, deslegitimam as operações. Além disso, a norma ainda carece de regulamentação.

“No momento em que o Brasil quer aprovar uma norma antielisiva, conhecer as experiências de outros países é importante para se escolher o melhor caminho e evitar incorrer nos mesmos equívocos”, conclui Mary Elbe. No período em que estiver em Lisboa, a tributarista pretende identificar procedimentos lícitos e objetivos, além de provas para que os contribuintes brasileiros possam fazer uma economia tributária com segurança, sem violar a lei. O tema da tese é Planejamento Tributário: Procedimentos lícitos e combate eficaz ao abuso.

Mary Elbe é referência quando o assunto é Direito Tributário. A pernambucana tem ampla experiência, não só como advogada, mas também como membro do antigo Conselho de Contribuintes, atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais da Receita Federal, onde atuou por cinco anos. Antes, foi auditora fiscal da Receita durante 22 anos. Ela, que comanda a presidência do Instituto Pernambucano de Estudos Tributários, também foi conselheira no Sebrae, cargo em que colaborou na formatação da Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas.

Autora de três livros sobre Direito Tributário   sem contar os títulos que escreveu com outros autores   e de inúmeros estudos e artigos na área, a advogada orgulha-se de já ter percorrido todos os estados do Brasil, com exceção do Amapá, oferecendo consultoria e treinamento e participando de eventos e seminários. “Posso dizer que conheço bem o processo de legislação.”

Seu trabalho nos dois lados do balcão lhe garantiu uma visão além das leis tributárias, focada no negócio de seus clientes, expertise difícil de encontrar. “As questões tributárias não são apenas jurídicas, de olhar para a lei tributária. Você tem de ter uma visão econômica. As mudanças na contabilidade modificaram paradigmas”, diz, ao comentar sobre as novas exigências trazidas pela Lei 11.638, de 2007, que obrigou as empresas a adequarem suas contabilidades aos padrões internacionais.

Como forma de poder oferecer serviço mais pessoal a seus clientes, a tributarista acaba de abrir dois escritórios: um em São Paulo e outro em Brasília. Porém, avisa que o foco não é ampliar a carteira. “Trabalhamos com causas em um determinado montante. Para manter o ritmo de trabalho, temos de ter poucos clientes, para que possamos fazer o acompanhamento direcionado dos casos. O escritório é como uma boutique, conheço os detalhes de cada um dos processos.” Por isso, a equipe é pequena. Mesmo com os novos escritórios e a matriz em Recife, Mary Elbe comanda um grupo de cinco advogados e cinco estagiários.

Antes de embarcar para Portugal, a advogada recebeu a reportagem da ConJur em seu novo escritório na capital paulista.

Leia a entrevista:

ConJur — O peso da carga tributária no Brasil é muito grande. A legislação sobre tributos é bastante complicada, com novas normas fiscais publicadas diariamente. Como o advogado tributarista deve atuar nesse cenário?
Mary Elbe Queiroz — Hoje as questões tributárias não são apenas jurídicas. É preciso ter uma visão mais ampla da empresa, uma visão econômica, financeira, contábil. Antes, a lei tributária mudava a forma de contabilizar, dava uma ordem, por exemplo, para fins tributários, e a contabilidade já se ajustava. Hoje há uma contabilidade para registros contábeis e outra para registros fiscais. Por exemplo, para o Imposto sobre a Renda, os bens devem ser avaliados pelo custo de aquisição. Já para fins contábeis, a avaliação é pelo preço justo.

ConJur — A Receita também mudou os critérios no cálculo do preço de transferência, de maneira parecida.
Mary Elbe — Com o preço de transferência, ao fazer um negócio, o contribuinte tem limites para evitar subfaturamentos ou superfaturamentos. Há uma Instrução Normativa 243/2002, que determina a tributação pelo preço de venda do insumo. Você pode até vender o insumo, mas antes terá de agregar valores. Esse é um exemplo de por que é preciso ter uma visão ampla para trabalhar com Direito Tributário. A contabilidade está trazendo uma mudança de paradigmas para a questão do planejamento tributário. De acordo com resolução da CVM, uma filial no exterior de empresa brasileira, para fins contábeis, é considerada coligada ou controlada. O próprio contador já tem a obrigação de registrar isso como se ela fosse uma filial, e reconhecer os resultados, o que para a Receita Federal é muito bom. 

ConJur — Uma das turmas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais entendeu que Instrução Normativa 243/2002, que gera tributação maior do que a da regra anterior sobre preço de transferência, é válida. No entanto, o Tribunal Federal da 3ª Região foi contrário à decisão do conselho. Como fica essa situação?
Mary Elbe — A Câmara Superior de Recursos fiscais precisa definir de vez essa questão, pois, na realidade, a IN 243 é flagrantemente ilegal. Mas isso vai ser definido pelo STJ. O interessante é que a disposição de motivos da norma dizia claramente que ela vinha para regulamentar o tema, que não estava regulado na lei. Mas se está dizendo que precisava regular por lei, como utilizaram uma IN? O Carf está com uma visão muito fiscalista, e a questão ficará para o STJ resolver.

 

ConJur — Qual será o foco dos seus estudos no exterior?
Mary Elbe — A reorganização societária e a abertura de planejamentos tributários. A empresa busca minimizar custos e ter mais resultados, mais lucro. E se ela tem mais lucro, também paga mais imposto. Então ela reduz custos de empregados, administrativos, operacionais, empresariais e também tributários. Com a globalização, as empresas não fazem operações pensando simplesmente em reduzir impostos, há outros objetivos. No Brasil, onde temos uma carga tributária alta, esse é um componente muito forte. A pessoa física prestadora de serviço paga 27,5% de Imposto de Renda, mais 5% de ISS e 11% de INSS. Ela não pode optar pelo Simples [regime tributário simplificado para micro e pequenas empresas] e é sobrecarregada com tributação.

ConJur — A Lei Complementar 123, a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, que a doutora ajudou a elaborar, não poderia ter ampliado essas condições?
Mary Elbe — Sim, mas isso foi proibido na proposta. Disseram que criaria distorções para o assalariado, que paga 27,5% e entraria nessa lista. Só que com isso você acabou castigando o profissional liberal, que não tem opção.

ConJur – Como foi participar do projeto da Lei Geral?
Mary Elbe — Com a Emenda Constitucional 42 [que acrescentou ao artigo 146 da Constituição, exigindo lei complementar que desse tratamento diferenciado a micro e pequenas empresas], participei do grupo que estava trabalhando nisso. A ideia era muito boa, mas depois vieram os estados, que alegaram perda de arrecadação e de controle e começaram a fazer emendas. Hoje, a lei é uma bolha muito grande e, muitas vezes, as micro e pequenas empresas pagam duas vezes. Eu até brinquei uma vez, dando uma palestra, dizendo que esse foi um filho que eu botei no mundo, que criou pernas próprias, mas também maus hábitos.

ConJur — Por que a senhora optou por fazer o pós-doutorado em Lisboa?
Mary Elbe — Lisboa já tem norma de abuso no planejamento tributário, que lá se chama cláusula de abuso. Também há a questão da proximidade com os professores de lá. A intenção é aumentar minha experiência e pesquisar também na Espanha, na Itália e nos Estados Unidos, onde essa norma já é aplicada há muito tempo. A legislação deles é parecida.

ConJur — Como está a questão no Brasil?
Mary Elbe — As empresas buscam planejar para reduzir a carga tributária. No Brasil se fala muito em regiões que são paraísos fiscais. No Norte e no Nordeste há 75% de redução do Imposto de Renda. Mas é preciso analisar o outro lado. Que empresa se instalaria nessas regiões se não houvesse esses benefícios? Não haveria emprego nesses locais, os estados dependeriam mais do Fundo de Participação. Gosto de trabalhar no aspecto preventivo, de orientação, porque muitos planejamentos tributários estão sendo autuados, e esses autos de infrações estão sendo mantidos por falta de cuidado na estruturação.

ConJur — Os últimos casos de punição por planejamento tributário se deram por falta de cuidado das empresas ou a Receita está apertando demais o contribuinte?
Mary Elbe — Teve certa falta de cuidado por parte do contribuinte, o que provocou a mudança de postura da Receita mudou. Antigamente se dizia que o que não é vedado por lei não é proibido. Mais isso não quer dizer que se pode fazer de qualquer Mas se fazia de qualquer jeito. Com a Lei Complementar 116, a Receita queria desconsiderar operações que fossem feitas com o único fim de economia tributária, uma coisa que não deu certo na Espanha. Na época em que a lei estava sendo formatada, disse que a lei era inconstitucional. Depois ela foi aprovada, mas precisava de regulamentação, foi quando saiu a Medida Provisória 66, que todo mundo achou um absurdo e que piorou a situação.

ConJur   Por que?
Mary Elbe   Porque ela teria de estabelecer critérios objetivos para essa desconsideração. Hoje isso está muito no subjetivismo, no achismo. Houve abuso do contribuinte, só que agora está havendo abuso do Fisco também. É preciso haver um equilíbrio, porque os contribuintes não podem ficar na insegurança de fazer uma operação que não é vedada pela lei e que, de repente, é desconsidera porque a empresa simplesmente pagou menos tributo. Eu acompanho um caso, em julgamento, em que a empresa tomou um empréstimo para comprar uma concorrente. Ela cresceu, gerou emprego, passou a recolher mais. Porém, o Fisco sentiu que havia alguma coisa errada e considerou a despesa com a operação indedutível, porque o empréstimo foi feito fora do país. O motivo foi que a Selic aqui é muito alta. O Fisco entendeu que precisava haver aumento de capital, mas a empresa não tinha bens para vender.

ConJur — A Receita interfere nos aspectos gerenciais?
Mary Elbe — Isso está acontecendo realmente. No caso que contei, a Procuradoria da Fazenda entendeu que houve má gestão. Mas quer melhor gestão do que uma empresa comprar seu concorrente e passar de 25% para 75% de participação no mercado, por meio de uma operação reconhecida lícita? As operações foram normais, legítimas. Não estou falando de sonegação, de fraude, nem de manipulação, mas estão sendo desconsideradas operações apenas para se cobrar tributos, porque o Fisco entende que, se fosse de outra forma, a empresa pagaria mais.

ConJur — Como está a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, que trata do assunto?
Mary Elbe — A Receita chegou a fazer um seminário para discutir a proposta de norma antielisiva, para dar critérios objetivos. Coisa que era impossível, porque, por exemplo, a Medida Provisória 66 fala “abuso de forma”. Mas o que é abuso de forma? Cada doutrinador tem um conceito. Coisas subjetivas demais são perigosas, porque ficam a critério do aplicador, de quem vai interpretar e aplicar a lei. Enfim, houve o seminário, o grupo chegou a algumas conclusões, mas com as mudanças no comando da Receita, não foi mandada proposta nenhuma para o Congresso.

ConJur — O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais já influencia a jurisprudência da Justiça?
Mary Elbe — Na questão da decadência para constituição do crédito tributário, o Carf julga há algum tempo que é inconstitucional o período de dez anos. O entendimento foi confirmado no Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça julgou ação, sob o rito dos Recursos Repetitivos, decidindo que a decadência é de cinco anos a partir do fato gerador, pelo artigo 150 do CTN, ou a partir do primeiro dia do exercício seguinte ao da ocorrência do fato gerador, se for aplicado o artigo 173 do CTN. O Fisco vinha considerando sete anos. Por exemplo, um fato de 2000, a Receita considerava que poderia lançar em 2001. Dessa forma, o prazo de cinco anos começava a contar em janeiro de 2002 e terminaria em janeiro de 2007.

ConJur — Dá para fazer planejamento tributário no Carf?
Mary Elbe — Não há julgamentos favoráveis. O conselho tem obedecido alguns requisitos. Operações em tempo rápido ou que dependam de outras, tipo step by step, operações triangulares, com empresas em paraísos fiscais, tudo isso desperta desconfiança. Operações legítimas, feitas por questões empresariais, mas às pressas e sem muito cuidado, hoje são vistas pelo Fisco como indícios para autuações. Por isso é importante um trabalho preventivo de análise das operações para suprir falhas, para que as operações sejam estruturadas de uma forma segura, que não gere incerteza depois de um tempo.

ConJur — Como isso é possível?
Mary Elbe — Tenho estudado para tentar identificar quais são os parâmetros. Um deles é que a operação não seja feita apenas para economizar tributos, ela precisa ter uma justificativa, o chamado propósito negocial. É claro que a substância tem que coincidir com a forma, agora mais do que nunca, por uma exigência da contabilidade. Os próprios princípios contábeis de regime de competência, da continuidade da empresa, da substância sobre a forma, do valor justo têm de ser obedecidos e a lei fiscal indiretamente reconhece isso, uma vez que estabelece que a base de cálculo dos tributos deve ser apurada de acordo com a lei societária.

ConJur — Com um escritório consolidado em Recife, por que resolveu abrir outros dois, em São Paulo e em Brasília?
Mary Elbe — Porque a maioria dos meus clientes é do Sul e Sudeste. Também atuo muito no STJ e no Supremo Tribunal Federal. Decidi ter uma base em São Paulo e aproximar minha assistência aos clientes. Quero estar perto de onde as coisas acontecem. Quer queira, quer não, São Paulo ainda é um centro de acontecimentos.

Conjur — A intenção é ampliar os negócios?
Mary Elbe — Quero ampliar a carteira de clientes, mas não muito o escritório. Nosso escritório tem essa característica de boutique, com poucas causas, para podermos acompanhar passo a passo cada caso. A ideia é que o trabalho seja bem pessoal, por isso, tudo passa por mim, eu mesma faço as peças, conheço todos os detalhes, pois só assim vou conseguir explicar para o cliente exatamente o que está acontecendo. Ou seja, trabalhamos sob o aspecto preventivo, buscando caminhos seguros no acompanhamento da fiscalização e, posteriormente, no momento do contencioso.

ConJur — Como funciona o acompanhamento?
Mary Elbe — Nos casos de procedimento de fiscalização, acompanhamos o processo de forma adequada para esclarecer e, quem sabe, até evitar uma autuação, ou evitar que haja uma interpretação equivocada da operação do contribuinte. Nos casos em que houve a autuação, trabalhamos na defesa administrativa. Ou mesmo posteriormente, em uma execução. Há casos em que o contribuinte apresenta DCTF [Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais], mas não paga. Aí imediatamente o débito é inscrito em dívida ativa e executado, sem passar pela autuação. Porém, muitas vezes há erro.

ConJur — Quais?
Mary Elbe — Tenho um caso em que metade do que estava sendo executado já estava prescrito. Há vezes em que a Procuradoria da Fazenda reconhece isso na fase de inscrição, antes da execução. Porque, quando você se defende de uma execução, é preciso dar bens a penhora, garantir em juízo. Uma questão interessante são os parcelamentos. Há uma nova instrução normativa que permite que débitos que não tinham sido ainda parcelados possam ser. Poderão ser incluídos novos débitos, desde que sejam débitos de até dezembro de 2008. Aí há um ponto interessante, que é o parcelamento do crédito-prêmio de IPI. A Receita Federal vem considerando que aquelas reduções que o contribuinte teve ao aderir seriam passíveis de tributação, mas não são.

ConJur — O que a Receita tem considerado?
Mary Elbe — A Receita está considerando que as reduções foram ganho, mas não foram. Porque a Lei 11.941 previa as reduções, mas como a MP 470 [que concedeu o parcelamento do crédito-prêmio de IPI] não foi convertida em lei, ficou essa questão se seria tributável ou não.

ConJur — A própria lei não dizia que não era?
Mary Elbe — Aí é que está. Quando a MP 449, que virou Lei 11.941, foi editada, havia um artigo sobre parcelamento, que foi vetado. Veio a MP 470 e inseriram um artigo isolado, e a questão ficou no limbo. Mas se você verificar adequadamente a sistemática de registros de impostos de autos de infração na contabilidade, vai ver que isso não é tributável. Há um dispositivo que diz assim: qualquer perdão de dívida é considerado como receita. Ora, se o Imposto sobre a Renda é um tributo sobre acréscimo patrimonial, quando uma dívida minha é perdoada e, logo, eu deixo de pagar aquela dívida, isso não quer dizer que eu acresci ao meu patrimônio.

ConJur – Com a decisão do Carf sobre ágio nas operações societárias para abatimento de IRPJ e CSLL, essa questão já está esclarecida? 
Mary Elbe — A gente ainda não sabe realmente o que vai acontecer, até porque mudou a composição do Carf. Eram procedimentos permitidos, previstos em lei. A Lei 9.532, que tratava do ágio, foi criada para permitir a privatização. Foram valorizados preços e, em contrapartida, as empresas tinham o direito de amortizar o valor pago a mais com esse ágio. Esse foi o raciocínio naquele momento. Depois de anos, muda-se a interpretação sobre a matéria e se diz que não é possível mais usar o ágio. A lei dizia que só poderia ser deduzido o ágio de rentabilidade futura. Então, ela delimitou os casos. O problema é que a questão foi generalizada e forçaram situações que não eram aquelas enquadradas na dedução. Agora, tem de haver a distinção do ágio que a lei previa.

ConJur — Quais sua avaliação do Projeto de Lei 354/09, que concede vantagens fiscais para facilitar a repatriação de valores mantidos no exterior e não declarados à Receita?
Mary Elbe — A vantagem é que o dinheiro vindo para cá vai gerar imposto. De uma forma ou de outra vai haver o pagamento de imposto. Caso contrário, o dinheiro não volta. O dinheiro está rendendo investimentos, gerando empregos em outro lugar. Então, para o Brasil, é interessante. Agora, tem de se distinguir dinheiro que não é proveniente de crimes. E essa é a desvantagem, permitir que dinheiro enviado ao exterior em decorrência de crimes seja legitimado. É uma anistia de crimes. É só depois que se vai descobrir que a pessoa é criminosa. O que poderia ser feito é o dinheiro entrar no país e pagar o imposto. Porém, o crime em si, que gerou os recursos, não pode ser anistiado. Ou seja, em algum momento o Ministério Público consegue investigar e ver que aquela pessoa efetivamente é criminosa e que tem de ser punida criminalmente.

ConJur — Mas esse dinheiro não valeria mais como prova.
Mary Elbe — A prova não é o dinheiro. Se você está de posse de R$ 1 milhão, isso não vai dizer que você cometeu um crime. Agora, é duro permitir no final das contas que a pessoa tenha seu dinheiro legalizado. Do ponto de vista de tributação, esse dinheiro está lá fora e nunca vai voltar. Mas há o aspecto educativo, ou seja, se você permite num momento que qualquer dinheiro entre, você está passando a seguinte mensagem: de alguma forma você pode delinquir e daqui um tempo esse dinheiro vai poder voltar e ser legalizado. Essa questão é mais forte no efeito social. Por exemplo, todo mundo é contra essa questão do crime de sonegação, mas quando você paga ou parcela, acabou o crime, se extinguiu a punibilidade. Eu não sou contra. Por quê? Porque na realidade ele pagou o imposto e com multa. O único problema é o efeito educativo.

ConJur — A multa já não exerce essa função?
Mary Elbe — Pois é. A multa agravada exerceria a condição de punição. No caso de dinheiro de sonegação, é legítimo o retorno dele ao país e o contribuinte pagar tributo. O problema é que nesse balaio de gato pode vir dinheiro de crimes como tráfico. Mas, se por ventura passar, não pode haver a extinção da punibilidade do crime só porque houve a entrada do dinheiro pagando imposto. Se por alguma forma o Ministério Público identificar que houve crime, o contribuinte tem de ser punido.

ConJur — Como a doutora tem visto decisões que relativizam coisa julgada na fase de execução da sentença pró-contribuinte?
Mary Elbe — Eu tenho visto muita execução de crédito-prêmio em que a pessoa tem sentença transitada em julgado e, nos embargos, se está revendo tudo. É uma insegurança total, porque a decisão judicial, certa ou errada, tem de ser definitiva e virar lei, senão nada mais é respeitado. Todo o sistema fica abalado, e rui. Em algum momento você tem de ter algo que encerre um litígio e não possa mais ser desfeito. Hoje, das nossas instituições, a única forte é o Executivo, que legisla por medida provisória. Quando o Supremo julga questões de inconstitucionalidade, julga favoravelmente à Fazenda, dando efeito prospectivo. Ou seja, a arrecadação é feita com base em uma lei inconstitucional, mas depois vem a Fazenda e diz que vai ter perda de arrecadação e o Judiciário aceita isso.

ConJur — Esse é o principal argumento?
Mary Elbe — Sim. A relativização da coisa julgada é a total insegurança. Como ficam as relações jurídicas, as atitudes no negócio, feitas com base em uma sentença transitada revista depois de cinco ou dez anos? 

ConJur — O que é mais forte: o princípio da segurança jurídica ou o Código de Processo Civil, no qual o Fisco se baseia?
Mary Elbe — Coisa julgada não é só um princípio, é uma das bases do sistema de um Estado Democrático de Direito. Legalidade é uma das bases do sistema Democrático de Direito, assim como coisa julgada, o ato jurídico perfeito. A minha sentença tem de ser respeitada, porque o órgão máximo que deu a sentença que transitou em julgado também tem que ser respeitado. A coisa julgada é a lei do Judiciário.

ConJur — Então que o artigo do CPC que autoriza a relativização é inconstitucional?
Mary Elbe — Não. Eu acho que ele não diz que vai poder ser relativizada a coisa julgada sempre. Não posso interpretar que tudo mudou porque o entendimento do Supremo foi alterado. No máximo, eu poderia dizer que a mudança valeria dali para a frente. Desconstituir o título judicial não é desconstituir a sentença. Eu posso, nos embargos, ou na defesa da execução ou no momento da execução, discutir a partir da sentença, mas não o conteúdo da sentença. Se o Supremo mudou o entendimento, mudou para outros fatos. A minha sentença transitou em julgado. É possível, no momento da execução, discutir o seguinte: os fatos estão de acordo com a sentença? No caso de pagamento do PIS e da Cofins da sociedade civil, o Supremo entendeu que a matéria é infraconstitucional. Aí o STJ julga e faz uma súmula dizendo que os tributos não são devidos. Com base nisso, o cidadão confiou, agiu de boa-fé e não pagou. Aí vem o Supremo e muda tudo. Qual é o interesse coletivo a ser protegido, o interesse público? É arrecadar a qualquer preço, passando por cima da base da sociedade? O Estado foi criado como ente que organiza a sociedade, mas esse Estado também tem de se submeter às regras, não é ilimitado.

ConJur — A Receita pode ter acesso a dados bancários sem autorização judicial?
Mary Elbe — Não existe sigilo bancário para a Receita Federal, porque ela já tem de conhecer tudo. Se o contribuinte é obrigado a escriturar tudo em livros, todas as operações, todos os negócios, qual é o segredo que o Fisco não pode acessar? Não existe sigilo a ser quebrado, porque não existe sigilo. Mesmo a pessoa física é obrigada a informar na declaração quanto tem no banco. O que o Fisco não pode acessar são as informações detalhadas sobre o destino do seu dinheiro. Mas o volume de recursos que foi movimentado ele tem que acessar sim. Cada operação de entrada e saída tem de estar escriturada no Livro Diário. Se existe algo sigiloso, que não está escriturado, aí sim está errado, porque está havendo sonegação de informações e omissões.

ConJur — E quanto à execução fiscal administrativa?
Mary Elbe — Determinadas coisas têm de ficar com o Judiciário, como a execução. A execução administrativa é feita pela Fazenda, que é parte. Nesses casos, é melhor que um terceiro, independente, imparcial, analise.

ConJur — O Fisco diz que seria apenas uma penhora garantidora.
Mary Elbe — Garantidora do quê? O título foi constituído unilateralmente. Depois que ele é constituído, é aberta a possibilidade de defesa do contribuinte, que passa por um órgão julgador paritário, onde a Fazenda está presente. O jogador não pode cobrar o escanteio e correr para cabecear. Para que haja equilíbrio na relação administração/administrado é preciso, em um momento, que um terceiro possa ver de fora se está tudo certo ou errado. O Judiciário já entra nas contas bancárias e bloqueia valores. Imagine se a própria Fazenda puder fazer isso.

ConJur — Como a doutora tem visto o protesto em cartório de dívidas tributárias?
Mary Elbe — É uma tendência. A administração é pequena para fazer frente aos milhões de contribuintes. Quantos procuradores há para realizar as ações? E também, cá para nós, o contribuinte gosta de não pagar, de protelar. Essa é uma situação irreversível. Vai chegar um momento em que a execução vai terminar. Cada vez mais o Fisco está se aparelhando.

ConJur — A reforma tributária tem de ser feita em nível constitucional?
Mary Elbe — Sim. Constitucionalizou-se regras tributárias para que elas fossem modificadas com mais dificuldade. Só que isso não tem muito efeito quando temos tantas emendas constitucionais. A legislação do PIS/Cofins é a coisa mais maluca que pode existir. É uma Babel legislativa. A grande promessa na exposição de motivos era acabar com a cascata para desonerar o produtor. Aí fizeram o PIS/Cofins não cumulativos, e a primeira coisa foi vedar o aproveitamento de créditos. É interessante você ler a exposição de leis. Escrevem coisas tão lindas, mas na prática é diferente.

Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico.

Ludmila Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.


Fonte: Consultor Jurídico